Tabellae defixionum de Hadrumetum, Túnez (WEEBER 1994, fig. 75). |
O saudoso Prof. Serafim da Silva Neto, em História do Latim Vulgar. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1977, p. 105sqq., nas pegadas de Maurice Jeanneret, La Langue des tablettes d’exécration latines. Paris, Neuchâtel, 1918, observa:
“Para o conhecimento do latim vulgar, têm a mais alta importância as chamadas tábuas execratórias (tabellae defixionum). São elas, como se sabe, mensagens anônimas, endereçadas a divindades malfazejas*, com o fim de obter, em detrimento de qualquer adversário e fora dos meios naturais**, vantagens improváveis ou ilícitas”. Aliás, diga-se de passagem, nem sempre anônimas, como se verá.
1 – Tabellae Defixionum, Tábuas Execratórias. Tabella, “tabuinha, pequena lâmina de chumbo ou bronze” é um derivado de “tábua, tabela”. Segundo Ernout Meillet, DIELL., p. 672sq., trata-se de termo técnico, sem etmologia definida, certamente um empréstimo. Defixio, - onis (palavra que só se encontra em Glossários, por ser de formatação posterior) é um derivado do verbo figo, perf. Fixi, sup. Fictum, depois fixum, inf. Figere, “fixar, pregar, gravar”.
As únicas aproximações possíveis são com o umbro fiktu, “crava”, afiktu, “fixa” e com um lituano dýgstu, dýgti, “fazer ponta, dar forma de ponta”, donde stricto sensu, tabella defixionis, é “uma tabuinha de cera, bronze ou chumbo com inscrições”. Mas, como o verbo figere, “gravar, fixar”, tomou o sentido de “execrar, amaldiçoar, perder, entregar a cabeça de alguém, pedir a destruição de uma pessoa às divindades infernais”, mercê do conteúdo das inscrições, Tabellae Defixiorum passaram a ter a conotação particular, sobretudo na magia e na bruxaria, de Tábuas Execratórias, isto é, de fórmulas de maldição e imprecação.
Trata-se, pois, de atividades e sentimentos peculiares a indivíduos das mais ínfimas classes sociais. São escravos, libertos, gladiadores.
As práticas de magia negra, em grande parte provindas do Oriente, particularmente do Egito, difundiram-se na Hélade, no decurso dos séculos V e IV a.C., conforme demonstrou, em obra recente, André Bernand, Sorciers Grecs. Paris, Fayard, 1991, p. 16sqq. Na Magna Grécia penetraram a partir do séc. III a.C.; em Roma, no séc. I a.C., espalhando-se, a seguir, por todo o vasto Império dos descendentes de Rômulo.
Embora as imprecações tenham múltiplas finalidades, Jeanneret, op. Cit., p.5, aponta quatro motivos principais para uma divisão globalizante das Tabellae:
a) amatoriae – o amor sem esperança de retorno, o ciúme exasperado e o despeito amoroso provocam o desejo de consagrar às divindades ctônias a esposa infiel, o amante rebelde, o rival mais afortunado ou todos eles ou ainda pedir-lhes com veemência a fidelidade, o retorno ou a posse imediata da pessoa amada;
b) iudiciariae – o medo de perder um processo ou o ressentimento por tê-lo perdido levam o litigante a desejar todas as desgraças possíveis ao adversário;
c) in fures – o desejo de vingança apela para a magia, para que sejam atingidos e punidos os inimigos;
d) ludicrae – os Ludi Circenses, os Jogos Circenses se constituíam numa das maiores paixões dos romanos, levando-os, por isso mesmo, a pedir e suplicar às divindades infernais a morte de tal gladiador ou de tal auriga ou ainda a derrota da facção rival.
As Tábuas Execratórias que se conhecem, até o momento, são poucas: as publicadas por Audollent, em 1904 e 1930, e por W. Sherwood Fox, em 1912.
A “alta importância” das Tábuas Execratórias não se restringe, porém, ao conhecimento do impropriamente denominado latim vulgar, mas são elas também de suma relevância para a compreensão de uma das facetas da religião popular (será que era só popular?) romana: a magia negra e a crendice das classes sociais menos cultas***.
Já se mencionou a publicação de W. Sherwood Fox. O título exato da mesma é o seguinte:The John Hopkins University tabellae defixiorum. In: American journal of Philology, apêndice, 1º fascículo do volume XXXIII, Baltimore , 1912. Trata-se de cinco tabellae, as quais, na realidade, são quase idênticas: as ligeiras divergências resumen-se em omissão, adição, deslocamento de palavras ou alterações gráficas. A diferença essencial está no nome do destinatário, a que visa a imprecação.
Alfred Ernout, Recueli de Textes Latins Archaiques. Paris, Klincksieck, 1947, p. 100-104, transcreve uma delas com alguns comentários acerca das variantes em relação às outras quatro Tábuas. Talvez a que se vai apresentar aqui, a Segunda na ordem do editor, provenha de Roma, apesar dos provincianismos. A data da redação, por indícios da escrita e da ortografia, leva a situá-la entre 75 e 50 a .C., ou seja, na época republicana, segundo o eminente latinista e filósofo francês.
A tradução, que se vai apresentar, uma vez transcrito o texto latino, é quanto possível literal, sem fugir às repetições, por se constituírem estas em poderoso auxiliar da eficácia mágica deste tipo de ritual negro de execração.
(pode-se constatar o encantamento em latim, no livro original, p. 283, aqui, reproduzi somente a tradução, que se segue).
“ - Bondosa e bela Prosérpina, esposa de Plutão, talvez seja conveniente que eu te chame Sálvia. Destrói a saúde, o corpo, a tez, as forças, as energias de Avônia. Entrega-a a Plutão, teu esposo. Que ela não possa evitar nada disto com a força de seu pensamento. Arruína-a, de imediato, com a Febre-quartã, terçã quotidiana, as quais lutem e relutem com ela, que a vençam e subjuguem completamente, até que lhe arranquem a alma. Para tanto eu te ofereço está vítima, Prosérpina, ou talvez seja conveniente que eu diga Prosérpina, ou Aquerôntica. Que me envies o cão tricéfalo, muito solicitado, para que arranque o coração de Avônia. Prometas que hás de oferecer-lhe três vítimas, tâmaras, figos e um porco preto, caso ele execute isto antes do mês de março.
Dar-te-ei estas coisas, Sálvia, quando me atenderes. Entrego-te a cabeça de Avônia, Prosérpina Sálvia; voto-te a fronte de Avônia, Prosérpina Sálvia; dedico-te os supercílios de Avônia, Prosérpina Sálvia; consagro-te as pálpebras de Avônia, Prosérpina Sálvia; cedo-te as pupilas de Avônia, Prosérpina Sálvia; ofereço-te as orelhas, os lábios, as narinas, o nariz, os dentes, a língua de Avônia, para que Avônia não possa dizer o que lhe dói; dou-te o pescoço, os ombros, os braços, os dedos, para que em nada se possa ajudar; o peito, o fígado, o coração, os pulmões, para que ignore onde lhe dói; os intestinos, o ventre, o umbigo, as costas, os flancos, a fim de que não possa dormir; a bexiga para que não possa urinar; as nádegas, as coxas, o ânus, os joelhos, as pernas, as tíbias, os pés, os calcanhares, , as solas do pé, os dedos, as unhas, para que não possa, por suas próprias forças, permanecer em pé. Quer seja muito, quer seja pouco o que foi escrito, legitimamente se escreveu e se ordenou. Assim, eu te entrego e te devoto Avônia, a fim de que a percas no mês de fevereiro. Que ela se arruíne, se desgrace e se destrua completamente. Que ordenes e a entregues para que não possa mais olhar, ver, contemplar nenhum mês.”
Diga-se de caminho, que a Tabella Execrationis, a Tábua Execratória, era, de preferência, colocada sub-repticiamente no túmulo de alguém recém-falecido, para que a mensagem chegasse com mais rapidez no mundo infernal...
As Tábuas Execratórias, de “procedência oriental”, que passando pela Grécia, se difundiram pelo Império Romano, continuam até nossos dias com outra indumentária, mas, no fundo, com a mesma essência. Na realidade, elas não pertenciam ao Oriente, ao Egito, à Grécia, a Roma, ou a qualquer outra nação; constituem um patrimônio comum a todas as culturas religiosas de todos os tempos, obedecendo, as mais das vezes, à mesma estrutura. A Magia não se altera substancialmente, apesar da distância no tempo e da diversidade cultural. O fio mágico que as trouxe ab origine até os tempos modernos é o Inconsciente Coletivo. A ponte que liga o telúrico ao ctônio sempre foi, nas culturas primitivas e em algumas das atuais, bem mais sólida do que a escada que levava e leva ao Olimpo.
A título de complementação, vamos transcrever uma pequena tábua execratória “moderna”. Trata-se de uma amatoria: alguém perdeu para outra o marido e deseja para o infiel o que “inzisti di mais ruin neste mundo”:
“- Larô Exu Cambalarô Exu, Amojuba seu Zé Pilintra. Dexo na sua mão o distino de R.M. Ele recebi o que mi deu. Quero vê ele viciado em tudo que inziste di mais ruin no mundo. O dinheiro dele vai imbora na bibida e no jogo. Nada mais vai da certo pra ele degora em dante. Bebi inté cai duenti do figo e do estomo. Seu Zé Pilintra faiz ele ficá sem paiz briga no trabaio e perda o imprego. Um duenti bebo e pobre que vira mindingo. Contu com o sinhô e quando eu ve o resurtado trago mais marafo e carne seca.”
Obs – Por falta de uma bibliografia adequada e de textos confiáveis, que esclarecessem suficientemente acerca da μαγεία (mangueía), da magia ou da γοητεία (goeteía), fórmula de imprecação, de fonte grega, não foi possível transcrever uma tabella defixionis helênica em nos dois volumes do Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis, Vozes, 1991-1992, mas ainda é uma ótima fonte de consulta.
Dispondo, agora, de uma fartura de T.E., procedentes de regiões helenizadas, ou romanizadas, sobretudo da época helenística e romana, vamos estampar a tradução, quanto possível literal, de duas amatoriae, que, segundo se explicou, podem expressar também pedidos angustiantes de posse da pessoa amada, como nos casos em pauta. “As mensagens”, que se vão apresentar, provém de locais diferentes: a primeira foi encontrada em Hadrumeto, na África, e, embora de conteúdo latino, está “camuflada” com caracteres gregos, conforme se explicará; a Segunda, inteiramente grega, é originária de Hauará, no Egito.
Algumas observações preliminares, no entanto, se fazem necessárias. De início, é conveniente reiterar que as Tabellae Defixionum são, em sua maioria, de cunho popular. É que a magia é a linguagem dos marginais, de pessoas que viviam alijadas do social(1).
Em se tratando particularmente da Hélade e sobretudo de Atenas, é mister levar em conta que a pólis foi organizada com base na exclusão. Exclusão da mulher, dos metecos, dos escravos e até mesmo dos adolescentes. Além do mais, na religião grega o sagrado estava atrelado ao poder: o sacerdote agia em nome da pólis, a magia agregava-se à pulsão, à vontade individual, que, de certa forma, afrontava o Estado. O fato é que estamos muito habituados a ver a Hélade da épica, do lirismo, do teatro e da filosofia, quer dizer, uma Grécia maquiada...A religião reflete a cultura; a magia, a natureza. A religião invoca os deuses, a magia os provoca, uma vez que esta última é um desafio ao divino e uma corajosa transgressão das leis naturais.
Em segundo lugar, nota-se nas goeteîai traduzidas uma terrível mistura de deuses: o Deus hebraico, divindades egípcias e gregas. Observe-se que, historicamente, à época em que foram redigidas “as mensagens”, entre os séculos II e III p.C., uma vasta parcela do Oriente, havia séculos, estava helenizada e a grande sede da magia foi o Egito, onde viviam milhares de gregos e judeus, principalmente após a fundação de Alexandria. De outro lado, a invocação do Deus dos Judeus é significativa: traduz a importância e o poder que se lhe atribuíam. Psicologicamente, a fusão e a invocação de vários deuses dão força e energia à imprecação. Nomes ininteligíveis, verdadeiras fórmulas secretas, bem como a sonoridade desconsertante das palavras (efeito mágico que se perde na tradução) e as repetições fazem parte do processo.
Propriamente não se pede, mas se constragem com ameaças os deuses e, não raro, o morto invocado, para que atendam e defiram ταcύ, ταcύ (takhý, takhý), “rapidamente, rapidamente”, a solicitação formulada. Outro ponto curioso é a menção tão somente do registro matronímico. Os nomes do suplicante e do suplicado são obrigatoriamente seguidos do nome de suas respectivas mães: em magia não pode haver engano...Sabe-se, com certeza, a identidade da mãe e não precisamente a do pai: mater certa, pater autem incertus, vale dizer, a mãe é natural, o pai é uma aquisição social.
Normalmente as goeteîai, as fórmulas de imprecações do mundo grego aparecem gravadas em chumbo. A escolha do metal não é aleatória. Se, de um lado, o chumbo, além de ser indestrutível, símbolo da posse para sempre da pessoa a quem se deseja conquistar, de outro, é também maleável, o que facilita a gravação e torna “flexível”, a vontade do destinatário. A isso se acresce a coloração acinzentada do metal, fato que traduz a morte, consoante Plínio, o Velho (Hist. Nat., 11, 114). De amor entendem os mortos e os deuses, particularmente os do mundo ctônio...
....continua na parte 2.
Sett Ben Qayin
*para o escritor, o diabo.
**meios naturais, significando os meios comuns que se conhecia, dentro da cultura do escritor.
***menos cultas, na linguagem do autor refere-se “do campo; sem instrução”. Isso designa que mesmo sem instrução ou graus escolares, alguém poderia ser herdeiro de uma Arte Sábia derivada da Antiga fé.
(1)= Constatação do autor, que a magia provinha de cunho pagão, segundo a interpretação de “sociedade”, que lhe constava.
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