Em
seu livro The Lotus and the Robot [O Lótus e o Robô], Artur Koestler
narra um incidente ocorrido quando ele estava sentado aos pés da guru indiana
Anandamayi a, que é venerada por dezenas de milhares de hindus como uma
encarnação do Divino. Uma mulher idosa aproximou-se do estrado e suplicou a
Anandamayi Ma que intercedesse por seu filho, desaparecido em ação num recente
incidente na fronteira. A santa ignorou-a por completo.
Quando
a mulher se tornou histérica, Anandamayi Ma dispensou-a com bastante aspereza,
o que foi um sinal para seus atendentes rapidamente conduzirem a mulher para
fora da sala.
Koestler
ficou surpreso com a indiferença de Anandamayi Ma ao sofrimento daquela mulher.
Concluiu que, pelo menos naquele momento, faltava compaixão à santa. Achou perturbador
que um ser supostamente iluminado, manifestando espontaneamente a plenitude do Divino,
pudesse mostrar tanta descortesia e dureza. Essa história lança luz sobre o fato
de que mesmo os seres supostamente "perfeitos" podem cometer — e
cometem — atos que parecem contradizer a imagem idealizada que seus seguidores
fazem deles.
Alguns
mestres "perfeitos" são famosos por suas explosões de raiva, outros
por seu autoritarismo. Em tempos recentes, inúmeros supergurus alegadamente
celibatários viraram manchete por causa de relações sexuais clandestinas com
suas seguidoras. Gênios espirituais — santos, sábios e místicos — não são
imunes a traços neuróticos ou a ter experiências muito semelhantes
aos estados psicóticos. Na verdade, mesmo adeptos aparentemente iluminados podem
ser sujeitos a características de personalidade que a opinião consensual acha indesejáveis.
Que
a personalidade de seres iluminados e místicos avançados permanece quase
intacta fica evidente quando examinamos biografias e autobiografias de adeptos,
passados e presentes.
Todos
eles manifestam qualidades psicológicas específicas, determinadas por sua
herança genética e pela história de suas vidas. Alguns se inclinam à
passividade, outros são espetacularmente dinâmicos. Alguns são gentis e outros,
ferozes. Alguns não têm interesse algum em aprender, outros são grandes
estudiosos. O que esses seres plenamente despertos têm em comum é que não se
identificam mais com o complexo da personalidade (como quer que este possa
configurar-se) e, sim, vivem a identidade do Self. A iluminação,
portanto, consiste em transcender o hábito do ego; mas a iluminação não oblitera
a personalidade. Caso o fizesse, estaríamos justificados em igualá-la á
psicose.
O
fato de a estrutura básica da personalidade permanecer essencialmente a mesma
depois da iluminação levanta uma questão crucial: a iluminação também deixaria
intocados os traços que, no indivíduo não-iluminado, seriam chamados de
neuróticos? Acredito que é assim. Se são verdadeiros mestres, pode-se esperar
que seu propósito supremo seja a comunicação da realidade transcendental. Ainda
assim, seu comportamento no mundo exterior é sempre uma questão de estilo pessoal.
Os
devotos, é claro, gostam de pensar que seu guru ideal está livre de
veleidades e que as aparentes idiossincrasias destinam-se ao ensino. Mas um
instante de reflexão mostra que essa idéia baseia-se em fantasia e projeção.
Alguns
mestres alegaram que sua conduta reflete o estado psíquico daqueles com quem entraram
em contato; em outras palavras, que seus atos, às vezes curiosos, são detonados
pelos discípulos. Isso talvez ocorra porque os adeptos iluminados são como
camaleões. Mas esse espelhamento também segue as linhas pessoais. Por exemplo,
alguns gurus não sentarão sobre montes de lixo, não consumirão carne humana
(como fazia o moderno mestre tântrico Vimalananda) nem meditarão sobre
cadáveres para instruir os outros, enquanto poucos daqueles que se entregam a
essas práticas se interessariam em treinar o intelecto ou adquirir destreza
musical para melhor servir ao discípulo.
A
personalidade do adepto é, com toda a certeza, mais orientada para a
auto-transcendência do que para a realização pessoal. No entanto, ela não se
caracteriza por manter uma trajetória de auto-realização. Uso aqui o termo auto-realização
num sentido mais restrito do que o pretendido por Abraham Maslow: como a
intenção para realizar a totalidade psíquica baseada na integração da sombra. A
sombra, em termos junguianos, é o aspecto escuro da personalidade, o agregado
de materiais reprimidos. A sombra individual esta inevitavelmente ligada à
sombra coletiva e para quem estuda astrologia helenística baseado na tradicional Yavanajataka, poderá enxergar a sombra junguiana na casa 12 considerando todos os aspectos e naturezas essenciais e acidentais ali contidas tanto em natividades diurnas quanto noturnas, essencialmente observando o sect. Essa integração não é um evento definitivo, mas um processo
que dura a vida toda. Tanto pode ocorrer antes da iluminação como depois dela.
Se a integração não é um programa consciente da personalidade antes da
iluminação, é improvável que ela forme parte da personalidade depois da
iluminação devido à relativa estabilidade das estruturas da personalidade.
Alguns
adeptos contemporâneos alegam que, quando a iluminação irrompe, a sombra é inteiramente
inundada com a luz da supraconsciência. A implicação seria: o ser iluminado não
tem sombra. Isso é uma afirmação difícil de aceitar quanto à personalidade
condicional. A sombra é o produto de permutas, quase infinitas, de processos
inconscientes essenciais à vida humana
que conhecemos. Enquanto a personalidade está vivendo a vida, um conteúdo inconsciente
forma-se apenas porque ninguém consegue estar continuamente consciente de tudo,
A extirpação da identidade do ego na iluminação não termina os processos de
atenção: ela apenas faz com que a atenção deixe de se fixar no ego. Além disso,
o ser iluminado continua a pensar
e a sentir, o que inevitavelmente deixa um resíduo inconsciente mesmo quando
não existe nenhum apego interior a esses processos. A diferença importante é
que esse resíduo não é considerado um obstáculo à transcendência do ego
simplesmente porque esse é um processo contínuo na condição iluminada.
Alguns
adeptos resolveram essa questão admitindo que existe um ego-fantasma, um centro
residual da personalidade, mesmo depois do despertar como Realidade universal.
Se aceitamos essa proposição, então podemos também falar da existência de uma
sombra-fantasma ou de uma sombra residual que permite ao ser iluminado
funcionar nas dimensões da realidade
condicional.
No indivíduo não-iluminado, ego e sombra andam juntos; poderíamos postular uma
polarização análoga entre ego-fan-tasma e sombra-fantasma após a iluminação.
Mesmo
se admitirmos que a iluminação aclara e dissipa a sombra, precisamos ainda questionar
seriamente se esse aclaramento corresponde à integração — a base para a autotransformação
mais elevada. Isso quer dizer que ela envolve uma mudança intencional na direção
da totalidade psíquica que pode ser observada pelos outros. Quando examino a
vida de adeptos
contemporâneos que alegam ser iluminados, não vejo evidências de que esse
trabalho de integração esteja sendo feito. Uma das primeiras indicações seria
uma visível disposição não apenas para espelhar os discípulos como também para
tê-los como um espelho de seu próprio crescimento. Entretanto, esse tipo de
disposição pede uma abertura que é cerceada pelo estilo autoritário adotado
pela maioria dos gurus.
Os
caminhos espirituais tradicionais são, na sua grande maioria, enraizados no
ideal vertical de libertação do condicionamento do corpo-mente.
Portanto, eles enfocam aquilo que é concebido como o bem último — o Ser
transcendental. Essa unilateralidade espiritual tira de foco a psique humana:
suas preocupações pessoais tornam-se insignificantes e suas estruturas são
vistas como algo a ser rapidamente transcendido, em vez de ser transformado. É
claro que todos os métodos de auto-transcendência envolvem certo grau de
autotransformação. Mas, como regra, isso não acarreta um forte esforço para
trabalhar com a sombra e realizar a integração psíquica. Isso talvez explique
por que tantos místicos e adeptos são altamente excêntricos e autoritários, e
pareçam ter, em nível social, personalidades pouco integradas.
Ao
contrário da transcendência, a integração ocorre no plano horizontal. Ela
amplia o ideal de totalidade à personalidade condicional e às suas conexões
sociais. Ainda assim, a integração só faz sentido quando a personalidade
condicional e o mundo condicional não são tratados como oponentes irrevogáveis
da Realidade última, mas sim valorizados como manifestações dela.
Tendo
descoberto o Divino nas profundezas de sua própria alma, o adepto precisa então
encontrar o Divino em todas as formas de vida. Esta é, na verdade, a principal
obrigação e responsabilidade do adepto. Ou, em outras palavras, tendo bebido na
fonte da vida, o adepto precisa completar a obra espiritual e praticar a
compaixão com base no reconhecimento de que todas as coisas participam do campo
universal do Divino.
Por Georg Feuerstein
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