Foi-se a Canícula e, antes de se matar o porco, devia-se matar o cão. Assim decorriam os rituais e festividades do calendário popular na Idade Média. A famigerada Canícula denominava o período que ocorria entre 24 de Julho e 26 de Agosto quando a constelação do Cão se ergue com o Sol, ficando visível a estrela Sirius – a abrasadora. Era precedida da festa da Ascensão que se celebrava no 1º de Maio. Esta era a festividade das máscaras de folhagem que deveria assegurar a protecção contra calores doentios da Canícula que provocavam a queima dos campos.
Já Plínio o Velho explicava as doenças das plantas neste período, por efeito da lua vermelha que ocorria por volta de 20 de Julho, no início da Canícula. Na Antiguidade sacrificavam-se também cães ruivos neste período, o que motivou uma associação ao culto de Anubis e ao de S. Cristóvão Cinocéfalo.
Representación del Cinocéfalo, Juan de Mandavila, Libro de las Maravillas del Mundo
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São Cristóvão é um santo lendário que foi abolido do calendário litúrgico em 1969. Membro de uma tribo de Marmaritas do Norte da África, foi martirizado em 308 da nossa era, depois de ter sido incorporado no exército romano e batizado por um bispo de Alexandria. Geralmente representado como um gigante que carrega o menino Jesus às costas para o ajudar a atravessar um rio - sendo patrono dos viajantes, teve também uma associação aos cultos do final da Canícula, um costume Francês que parece ter migrado da Lupercália Italiana. Segundo a lenda (quer na raiz grega, quer na latina) Cristóvão provinha de uma tribo de canibais e cinocéfalos (a tradição das raças fantásticas que habitavam o Oriente e que se espalhou pelo mundo para populá-lo com descendentes da raça bruxa, assim como fizeram os Nephilins), razão pela qual assim aparece representado em diversas iconografias, particularmente nos ícones bizantinos, a maneira mais culta de se tentar cristianizar o Deus Lupercus no início da era cristã, sob a máscara de São Cristóvão. Como viajante, de animal à humano, de humano à Deus, ele é o portador de Deus, e atravessa os sentimentos com o divino ungido (ou divina unção) nas costas. Eis um dos segredos dos Lupinos.
Os rituais do mata-cão, ou fim da Canícula ligavam-se, na Idade Média, à festa da ceifa, ainda conhecidos no início do século na Lorraine, em França como a fête du tue-chien ou fête des moissons. Entre outras associações, representava a purificação do espírito do trigo que era sacrificado sob a forma deste animal. Matavam-se nesta altura também os maus cães, apelidados em França de “vannoures” cujo couro servia para fabricar os tabuleiros de “vanneurs” onde se separavam as espigas. Também é possível que tenha havido um mimetismo com o deus Janus que representava a morte (figurado com a gadanha na mão e a ampulheta do tempo), mas também as ceifas e trabalhos agrícolas. Janus ou Vannus, referido por Virgílio nas Geórgias (Lib.IV,1666) com a crates que separava as espigas impuras.
Representação de Vannus? Misericórdia de cadeiral de Santa Cruz de Coimbra, c.1513/18 |
Representação da Canícula, S. Cristóvão Cinocéfalo, ícone do séc. XVI, Museu Benaki, Atenas |
S. Cristóvão canibal, ícone da igreja de S. Jorge, Çegelkoi, na antiga Bithynia, Turquia |
S. Cristóvão cinocéfalo, ícone bizantino, Museu Bizantino de Atenas
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Bibliografia:
GAIGNEBET, Claude; LAJOUX, Dominique, Art profane et religion populaire au moyen âge, P.U.F, Vendômme, France, 1985
SAINTYVES, Pierre, Saint Christophe sucesseur d’ Annubis, d’Hermes et d’Héraclès, Paris, Nourry, in 8º,p.55
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