segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A Sombra Do Guru Iluminado





Em seu livro The Lotus and the Robot [O Lótus e o Robô], Artur Koestler narra um incidente ocorrido quando ele estava sentado aos pés da guru indiana Anandamayi a, que é venerada por dezenas de milhares de hindus como uma encarnação do Divino. Uma mulher idosa aproximou-se do estrado e suplicou a Anandamayi Ma que intercedesse por seu filho, desaparecido em ação num recente incidente na fronteira. A santa ignorou-a por completo.

Quando a mulher se tornou histérica, Anandamayi Ma dispensou-a com bastante aspereza, o que foi um sinal para seus atendentes rapidamente conduzirem a mulher para fora da sala.
Koestler ficou surpreso com a indiferença de Anandamayi Ma ao sofrimento daquela mulher. Concluiu que, pelo menos naquele momento, faltava compaixão à santa. Achou perturbador que um ser supostamente iluminado, manifestando espontaneamente a plenitude do Divino, pudesse mostrar tanta descortesia e dureza. Essa história lança luz sobre o fato de que mesmo os seres supostamente "perfeitos" podem cometer — e cometem — atos que parecem contradizer a imagem idealizada que seus seguidores fazem deles.
Alguns mestres "perfeitos" são famosos por suas explosões de raiva, outros por seu autoritarismo. Em tempos recentes, inúmeros supergurus alegadamente celibatários viraram manchete por causa de relações sexuais clandestinas com suas seguidoras. Gênios espirituais — santos, sábios e místicos — não são imunes a traços neuróticos ou a ter experiências muito semelhantes aos estados psicóticos. Na verdade, mesmo adeptos aparentemente iluminados podem ser sujeitos a características de personalidade que a opinião consensual acha indesejáveis.

Que a personalidade de seres iluminados e místicos avançados permanece quase intacta fica evidente quando examinamos biografias e autobiografias de adeptos, passados e presentes.
Todos eles manifestam qualidades psicológicas específicas, determinadas por sua herança genética e pela história de suas vidas. Alguns se inclinam à passividade, outros são espetacularmente dinâmicos. Alguns são gentis e outros, ferozes. Alguns não têm interesse algum em aprender, outros são grandes estudiosos. O que esses seres plenamente despertos têm em comum é que não se identificam mais com o complexo da personalidade (como quer que este possa configurar-se) e, sim, vivem a identidade do Self. A iluminação, portanto, consiste em transcender o hábito do ego; mas a iluminação não oblitera a personalidade. Caso o fizesse, estaríamos justificados em igualá-la á psicose.

O fato de a estrutura básica da personalidade permanecer essencialmente a mesma depois da iluminação levanta uma questão crucial: a iluminação também deixaria intocados os traços que, no indivíduo não-iluminado, seriam chamados de neuróticos? Acredito que é assim. Se são verdadeiros mestres, pode-se esperar que seu propósito supremo seja a comunicação da realidade transcendental. Ainda assim, seu comportamento no mundo exterior é sempre uma questão de estilo pessoal.



Os devotos, é claro, gostam de pensar que seu guru ideal está livre de veleidades e que as aparentes idiossincrasias destinam-se ao ensino. Mas um instante de reflexão mostra que essa idéia baseia-se em fantasia e projeção.
Alguns mestres alegaram que sua conduta reflete o estado psíquico daqueles com quem entraram em contato; em outras palavras, que seus atos, às vezes curiosos, são detonados pelos discípulos. Isso talvez ocorra porque os adeptos iluminados são como camaleões. Mas esse espelhamento também segue as linhas pessoais. Por exemplo, alguns gurus não sentarão sobre montes de lixo, não consumirão carne humana (como fazia o moderno mestre tântrico Vimalananda) nem meditarão sobre cadáveres para instruir os outros, enquanto poucos daqueles que se entregam a essas práticas se interessariam em treinar o intelecto ou adquirir destreza musical para melhor servir ao discípulo.

A personalidade do adepto é, com toda a certeza, mais orientada para a auto-transcendência do que para a realização pessoal. No entanto, ela não se caracteriza por manter uma trajetória de auto-realização. Uso aqui o termo auto-realização num sentido mais restrito do que o pretendido por Abraham Maslow: como a intenção para realizar a totalidade psíquica baseada na integração da sombra. A sombra, em termos junguianos, é o aspecto escuro da personalidade, o agregado de materiais reprimidos. A sombra individual esta inevitavelmente ligada à sombra coletiva e para quem estuda astrologia helenística baseado na tradicional Yavanajataka, poderá enxergar a sombra junguiana na casa 12 considerando todos os aspectos e naturezas essenciais e acidentais ali contidas tanto em natividades diurnas quanto noturnas, essencialmente observando o sect. Essa integração não é um evento definitivo, mas um processo que dura a vida toda. Tanto pode ocorrer antes da iluminação como depois dela. Se a integração não é um programa consciente da personalidade antes da iluminação, é improvável que ela forme parte da personalidade depois da iluminação devido à relativa estabilidade das estruturas da personalidade.

Alguns adeptos contemporâneos alegam que, quando a iluminação irrompe, a sombra é inteiramente inundada com a luz da supraconsciência. A implicação seria: o ser iluminado não tem sombra. Isso é uma afirmação difícil de aceitar quanto à personalidade condicional. A sombra é o produto de permutas, quase infinitas, de processos inconscientes essenciais à vida humana que conhecemos. Enquanto a personalidade está vivendo a vida, um conteúdo inconsciente forma-se apenas porque ninguém consegue estar continuamente consciente de tudo, A extirpação da identidade do ego na iluminação não termina os processos de atenção: ela apenas faz com que a atenção deixe de se fixar no ego. Além disso, o ser iluminado continua a pensar e a sentir, o que inevitavelmente deixa um resíduo inconsciente mesmo quando não existe nenhum apego interior a esses processos. A diferença importante é que esse resíduo não é considerado um obstáculo à transcendência do ego simplesmente porque esse é um processo contínuo na condição iluminada.

Alguns adeptos resolveram essa questão admitindo que existe um ego-fantasma, um centro residual da personalidade, mesmo depois do despertar como Realidade universal. Se aceitamos essa proposição, então podemos também falar da existência de uma sombra-fantasma ou de uma sombra residual que permite ao ser iluminado funcionar nas dimensões da realidade
condicional. No indivíduo não-iluminado, ego e sombra andam juntos; poderíamos postular uma polarização análoga entre ego-fan-tasma e sombra-fantasma após a iluminação.

Mesmo se admitirmos que a iluminação aclara e dissipa a sombra, precisamos ainda questionar seriamente se esse aclaramento corresponde à integração — a base para a autotransformação mais elevada. Isso quer dizer que ela envolve uma mudança intencional na direção da totalidade psíquica que pode ser observada pelos outros. Quando examino a vida de adeptos contemporâneos que alegam ser iluminados, não vejo evidências de que esse trabalho de integração esteja sendo feito. Uma das primeiras indicações seria uma visível disposição não apenas para espelhar os discípulos como também para tê-los como um espelho de seu próprio crescimento. Entretanto, esse tipo de disposição pede uma abertura que é cerceada pelo estilo autoritário adotado pela maioria dos gurus.



Os caminhos espirituais tradicionais são, na sua grande maioria, enraizados no ideal vertical de libertação do condicionamento do corpo-mente. Portanto, eles enfocam aquilo que é concebido como o bem último — o Ser transcendental. Essa unilateralidade espiritual tira de foco a psique humana: suas preocupações pessoais tornam-se insignificantes e suas estruturas são vistas como algo a ser rapidamente transcendido, em vez de ser transformado. É claro que todos os métodos de auto-transcendência envolvem certo grau de autotransformação. Mas, como regra, isso não acarreta um forte esforço para trabalhar com a sombra e realizar a integração psíquica. Isso talvez explique por que tantos místicos e adeptos são altamente excêntricos e autoritários, e pareçam ter, em nível social, personalidades pouco integradas.

Ao contrário da transcendência, a integração ocorre no plano horizontal. Ela amplia o ideal de totalidade à personalidade condicional e às suas conexões sociais. Ainda assim, a integração só faz sentido quando a personalidade condicional e o mundo condicional não são tratados como oponentes irrevogáveis da Realidade última, mas sim valorizados como manifestações dela.

Tendo descoberto o Divino nas profundezas de sua própria alma, o adepto precisa então encontrar o Divino em todas as formas de vida. Esta é, na verdade, a principal obrigação e responsabilidade do adepto. Ou, em outras palavras, tendo bebido na fonte da vida, o adepto precisa completar a obra espiritual e praticar a compaixão com base no reconhecimento de que todas as coisas participam do campo universal do Divino.

Por Georg Feuerstein

clique no link abaixo para desmistificar o trabalho de ego:




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